Uma eleição fora da curva

Da Coluna do Sarney

A Covid-19 é realmente uma doença que veio mexer com nossa vida e com a organização da sociedade. Perante ela, nada resistiu. O desconhecimento do vírus, num redemoinho, modificou a nossa forma de convivência e disseminou o medo, impactando dos sistemas de prestação da saúde e indo até ao culto a Deus. Basta vermos as regras básicas: manter o isolamento, afastar-se das pessoas, decretar a solidão pelo receio de estar junto. Restringimos nossa fala, as máscaras dificultaram nossas conversas, e assim atingimos tantas coisas, dos negócios ao amor.

Mas quero deter-me na parte que atingiu as eleições. Esta eleição que vamos ter agora, em novembro, é inteiramente diferente de qualquer outra que tivemos. Não temos mais como fazer campanha da maneira como sempre fizemos, com o corpo a corpo, os comícios, as reuniões de apoiadores, as passeatas, as bagunças dos mais agitados, os trios elétricos.

Para consolidar essa nova maneira de campanha, trabalha-se com a ausência de dinheiro, pois criamos, com essa lei do financiamento eleitoral, uma hipocrisia oficial, sancionada pela Justiça Eleitoral. Como pensar que mais de 19 mil candidatos a prefeito, mais de 515 mil candidatos a vereador em 5.568 municípios brasileiros poderão fazer ao menos o que ficou permitido — cartazes, milhões de mensagens de vídeos, comunicados e gravações de apoio — com o pouco dinheiro que estará disponível? Já ouvi de candidato a vereador que o partido lhe daria mil reais, ou nada! Os 30% destinados para as mulheres, que se julgavam privilegiadas, também não vão dar para nada.

O que se deduz de tudo isso? É a avassaladora corrupção de gastos irregulares: quem mais tem para gastar são os candidatos ricos, que podem tirar dinheiro do próprio bolso, e a máquina pública (estadual, municipal e federal). Pensar que a Justiça Eleitoral vai ter fiscalização capaz de evitar os gastos ilegais é de uma ingenuidade ou um farisaísmo intencional.

O Brasil tem o melhor sistema de tomada de voto do mundo. Eu, ainda deputado, apresentei projeto criando o serviço de alistamento eleitoral, que antes era feito pelos candidatos e partidos; como presidente da República, propiciei os recursos e apoiei o Ministro Nery da Silveira, então presidente do Tribunal Superior Eleitoral, a iniciar o processo de digitalização do voto. Recebi dele o primeiro título digital, no Maranhão.

Então temos o melhor sistema de votação e o pior de financiamento, pois este induz o enfraquecimento da democracia e estimula a corrupção.

O mundo caminhou um longo tempo para chegarmos à democracia que temos hoje no mundo. No passado, em Esparta havia “a maioria dos gritos”, segundo João Lisboa, em que os apuradores ficavam trancados numa sala, e o povo reunido na praça pública. Quem tinha mais palmas ou gritava mais era o vencedor. Ou então o velho e moderno sistema de compra de voto, que atingia a própria Igreja, às vezes perdidas em longas disputas, que resultaram nos conclaves — fechados com chave —, que não resolveram o problema. O Pe. Vieira escrevia sobre a eleição do Papa Clemente X, cujo conclave durou 130 dias: “virão a acomodar algum decrépito, a que aqui chamam Papa em depósito, para que, no entretanto de sua pouca duração, com os acidentes do tempo, cada  um possa melhorar de partido”.

Mas o que esperamos é o fim da Covid-19 e a reforma do financiamento atual, em que o povo paga e o resultado é a fraude financiada.

3 pensou em “Uma eleição fora da curva

  1. O atraso do Brasil só está na mão da população porque de lá vem o voto, mas perpassa o cérebro dos políticos que lá no Congresso Nacional se aposentam e cada vez pior o país fica. Onde está a incoerência, no grupão (povão) ou no grupinho (Congresso)? Somos um país rico, mas não crescemos ao esperado porque o atraso está na classe política em que tudo é para sí primeiro, o povão em segundo plano.
    Parabéns Presidente Sarney. Texto para muitas reflexões!!!!!

  2. Realmente é uma fraude anunciada, onde partido incha sua relação de candidatos para abocanhar uma parte maior do bolo.
    Candidatos que não recebem o dinheiro para usar em suas campanhas.
    Tem partido que dão notas de gasolina, dão santinhos, pagam algumas despesas do candidato mas, não entregam o valor em espécie para o mesmo.
    Depois vem com notas fiscais superfaturadas para ele assinar.
    Eu particularmente acho que não deveria ter financiamento público para campanha eleitoral, pois quem quer ser candidato que arque com suas despesas, pois esse dinheiro deveria ser usado para financiar saúde, educação, infraestrutura, pois é que mais precisa neste momento esta nacão.

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