Ibraim Djalma, procurador federal
Entre 1858 a 1947, a Índia foi colônia britânica e houve uma época em que havia uma alta taxa de pessoas mortas por cobras venenosas.
No anseio de resolver a situação, autoridades inglesas em Deli criaram a estratégia de dar recompensas em dinheiro por cobras mortas.
A medida inicialmente pareceu dar certo. Mas com o tempo, os indianos verificaram nisso uma oportunidade de ganhar dinheiro e começaram a criar cobras em cativeiro para depois matá-las.
Quando governo britânico se deu conta, parou de pagar a recompensa e os indianos soltaram as cobras criadas, causando um aumento drástico no número de cobras na cidade.
Esse fenômeno é até hoje usado para ilustrar casos em que a tentativa de solução pode resultar em consequência mais agravadas se não bem pensada previamente.
No Brasil, a concessão de benefícios e as taxações elevadas devem sempre ter a cautela que os britânicos não tiveram.
Existe um benefício assistencial no país, cuja finalidade é irretocável e de imensa importância. O chamado benefício de prestação continuada – BPC.
Quase 5 milhões de brasileiros recebem. Ouso dizer até que bem mais tem direito. São quase 7 bilhões de reais por mês.
Alto custo. Mas tem causa e necessidade.
Mas há quem diga que esse beneplácito acaba estimulando a informalidade e, por vez, a improdutividade. Tem suas razões. Não a ponto de exterminá-la. Mas tem.
O benefício assistencial está previsto na Constituição Federal, mas foi efetivamente criado só em 1993 e tem como finalidade principal garantir uma renda mínima de subsistência para idosos e pessoas com deficiência; evitando assim que, para além da pobreza, o cidadão não caia em verdadeira situação de degradação humana sem qualquer renda.
É uma garantia da dignidade da pessoa humana. Belo propósito!
No Brasil esse benefício ganhou passos largos, com constantes inovações e uma fila sempre enorme de demandantes. Estímulo à improdutividade ou à informalidade, alguns dizem. Vá saber.
Falemos primeiro do benefício.
Importante saber que o BPC não exige contribuição, pois é de natureza assistencial, apesar de ser pago pelo Instituto Nacional de Seguridade Social, o famoso INSS.
Na verdade, segue contrário aos benefícios pagos pelo INSS. No LOAS – como se costuma chamar o benefício assistencial por alusão à Lei Orgânica de Assistência Social – se houver contribuição, perde o direito.
De regra, possuem direito os idosos, com idade de 65 anos ou mais, além das pessoas portadoras de deficiência, aquelas que possuem impedimentos de natureza física, mental, intelectual ou sensorial, a longo prazo, que as coloquem em situação de desigualdade com as demais pessoas.
Para os idosos, quanto a esse requisito, basta apresentar a Carteira de Identidade ou outro documento idôneo que comprove sua idade. De regra, com foto, para evitar fraudes. E como tem!
Já a pessoa com deficiência deve passar por uma perícia oficial, pois não é qualquer deficiência que confere o direito, só a que impede a pessoa de se prover, ou seja, que a incapacidade seja limitante a ponto de comprometer o portador de trabalhar.
O valor é de 01 (um) salário-mínimo, mas não tem 13 (décimo terceiro) nem gera pensão por morte.
Outro requisito é o chamado pela jurisprudência de miserabilidade.
Nesse caso, a pessoa deve ter renda per capita familiar mensal igual ou inferior a ¼ (um quarto) do salário-mínimo, o que hoje está em torno de R$330,00 por pessoa.
Na prática, é somar a renda de todos os familiares da mesma casa e dividir pelo número de membros; se der esse valor ou menor, já se tem preenchido mais esse requisito. Tudo registrado no CADúnico.
São, portanto, milhões de brasileiros que recebem este benefício mês a mês, e outros milhares que pleiteiam o direito e aguardam um desfecho no INSS e na justiça.
A ideia é não desvirtuar de seu propósito original, ou seja, não ser entendido como uma renda a mais para quem trabalha, mesmo que informalmente. Tampouco deve estimular a ociosidade ou improdutividade.
É para quem não consegue trabalhar, seja pela deficiência ou por idade avançada e não tem ninguém da família que possa ajudar.
Sua procura e o número de concessões têm aumentado a cada ano, revelando, por si só, o quadro de miserabilidade e informalidade pela qual o país passa.
Mas aí vem a pergunta: esse benefício estimula ou não a manutenção da informalidade, já que a falta de registro de renda torna mais fácil cumprir o quesito da miserabilidade?
Se, por um lado, o Estado, incumbido de garantir o benefício assistencial, pretende arrecadar mais com a formalidade nas atividades econômicas, por outro, a elevação da carga tributária estimula a manutenção da informalidade, potencializada pela concessão de um benefício cujo um dos critérios é não ter renda “registrada”.
Taxistas, cabelereiros, entregadores de app, dentre tantos outros, enquanto deveriam contribuir para a previdência como segurado e usufruir dos seus benefícios, acabam se valendo muitas vezes dessa condição de informal para manter o requisito da miserabilidade e garantir o benefício ao idoso ou deficiente com quem dividem o teto.
Culpa do cidadão?
Cada um com suas razões. Instinto de sobrevivência fala mais alto. Não dá tempo de pagar seguradora e receber só lá na frente. Talvez.
Mas existe uma curva limite nessa empreitada governamental que pode perverter a finalidade pela qual o benefício assistencial foi criado e, ao invés de remediar a miséria no país pelo paliativo da renda mensal, acaba por estimular a manutenção da informalidade para os que já recebem o benefício ou por membros da família que moram no mesmo domicílio.
E mais, a concessão fora das finalidades pode ser um verdadeiro instrumento de ociosidade, num cenário indesejado em que os cidadãos rejeitam trabalho por ter uma “renda mensal”.
Gerir a política pública previdenciária não é tarefa fácil. As hipóteses de taxação, o peso delas na ordem econômica e, principalmente os efeitos nos comportamentos dos cidadãos tem sido uma batalha hercúlea para os legisladores.
Se estenderem benefícios demais, estimula-se o ócio; por outro lado, se reduzirem, correm o risco de negarem dignidade mínima a quem precisa.
Pelo visto, o cenário ainda corre a cobras soltas. E a estratégia para matá-las não parece ser tão fácil assim.
Resta saber se a lição inglesa serviu para os brasileiros.